Por séculos, nós brasileiros fomos marcados por algumas etiquetas: povo ordeiro, pacífico, harmonioso, feliz. Afinal, morávamos no paraíso e Deus era brasileiro. Essa idealização de um lugar idílico, presente em várias culturas, ganhou contornos fortes no Brasil. Quando os ‘navegantes-conquistadores’ aportaram por aqui, acompanhados pelos ‘evangelizadores-conquistadores’, descreveram o que haviam ‘descoberto’ como “o jardim perfeito: vegetação luxuriante e bela (flores e frutos perenes), feras dóceis e amigas (…), temperatura sempre amena (…), primavera eterna contra o ‘outono do mundo’ de que falava o fim da Idade Média, referindo-se ao sentimento de declínio e à esperança de restituição da origem”. Estavam convictos de que a ‘Terra de Vera Cruz’ era o paraíso tão bem descrito em várias obras da literatura medieval. Esse retrato do Brasil – visto como Jardim do Édem, lugar de plena paz, ordem e felicidade – foi se consolidando ao longo dos anos e incorporado ao imaginário popular. A filósofa Marilena Chauí aponta dois exemplos que reforçam essa ideia de um paraíso: “a nossa bandeira não exprime o político, não exprime a história. É um símbolo da natureza: floresta, ouro, céu, estrela e ordem. É o Brasil-Jardim, o Brasil-Paraíso”, diferente das bandeiras que se inspiraram nos ideais da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. O Hino Nacional também reforça a visão de um lugar bucólico, pois “canta mares, céus, sóis, bosques, flores, nossa vida de mais amores. O gigante está adormecido deitado eternamente em berço esplêndido, isto é, na natureza como paraíso, berço do mundo e eterno em seu esplendor”. Na minha infância, era obrigado na escola a decorar a poesia de Olavo Bilac: “Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste. Criança! Jamais verás país algum como este! Olha que céu, que mar, que floresta! A natureza, aqui perpetuamente em festa, é um seio de mãe a transbordar carinhos”. Na década de 1970, já na adolescência, em plena ditadura militar, o hit nacional era a canção “Eu te amo, meu Brasil”, da dupla Dom e Ravel, na versão da banda Os incríveis: “O Céu do meu Brasil tem mais estrelas. O sol do meu país, mais esplendor. A mão de Deus abençoou. Em terras brasileiras vou plantar amor”. Além de exaltar o Brasil-Paraíso, a letra trazia um novo-velho elemento machista: “Mulher que nasce aqui tem mais amor… Mulatas brotam cheias de calor… No carnaval, os gringos querem vê-las num colossal desfile multicor”. Um ano antes, Jorge Ben, que ainda não era Jor, compôs a canção “País Tropical”, que também revelava um país idealizado: “Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, mas que beleza. Em fevereiro, tem carnaval”.
Essa narrativa da origem – Brasil-Paraíso – operando como um mito fundador, foi se repetindo ao longo da nossa história. Só que, aos poucos, a idealização de um jardim paradisíaco, que alimentava o narcisismo de uma nação, entrou em colapso. Diante de uma realidade que flerta com a barbárie e com a ignorância, uma parte significativa da população brasileira se fixa na repetição e na manutenção de discursos saudosistas de um paraíso que sempre foi pura ficção. Se o Brasil em algum momento foi o paraíso, o foi para poucos. E assim continua sendo. É para aqueles que, com facilidade e sem culpa, trocam o Rio de Janeiro por Trancoso e continuam em “berço esplêndido”. Para os demais mortais resta sair da tentativa patológica e paralisante de querer salvar o paraíso-ficção. Não precisamos de um paraíso. Basta uma nação.
(Clovis Pinto de Castro