Os líderes estão o tempo todo articulando artimanhas, estratégias e formas para manter ou recuperar o poder, a qualquer custo.
“Ele sempre foi muito esperto, mesmo quando era criança. Mas uma coisa é ser esperto, outra é ser sábio”, diz Lady Catelyn Tully, de Winterfell, num dos episódios da série Game of Thrones, produzida pelo canal HBO e baseado no best-seller “As Crônicas de Gelo e Fogo”, de George R.R. Martin. É um drama que se desenvolve em Westeros, região fictícia que lembra a Europa Medieval, lugar onde as estações climáticas podem durar por anos, até décadas. Num ambiente totalmente hostil, sob o impacto de alianças e traições, cada um dos sete reinos busca manter a segurança de seu território. Para isso, fazem alianças estratégicas para conquistar o “Trono de Ferro”, o assento do rei dos Sete Reinos e, desta forma, assegurar a sobrevivência no longo inverno que se aproxima. Entretanto, em cada novo episódio, fica evidente que o senso de segurança é ilusório. A qualquer momento, sem avisar, a segurança pode mostrar a sua precariedade e colocar em risco o poder dos reinos e a vida de muitas pessoas. Os líderes estão o tempo todo articulando artimanhas, estratégias e formas para manter ou recuperar o poder, a qualquer custo.
Em um ambiente em que ninguém pode confiar em ninguém, a astúcia é o principal elemento dos reinos de Westeros. O astuto é aquele que sabe dissimular, criar intrigas, manipular, que costura as traições na calada da noite e arma ciladas à luz do dia. Como diz um dito popular, é o que “tem o olho vesgo da má-fé”. Na língua portuguesa, uma das traduções para astuto é esperto. No Brasil, esperto se transformou em sinônimo de espertalhão, aquele que vive para levar vantagem e buscar um jeitinho para alcançar os seus objetivos, mesmo que por caminhos ilícitos.
Há algumas décadas, ficou conhecida no Brasil a “Lei de Gerson”. Considerado um dos gênios da Copa do Mundo de 1970, quando a seleção brasileira de futebol conquistou o tricampeonato, Gerson se tornou um dos jogadores mais populares. No auge da fama, resolveu fazer propaganda de cigarro para a televisão. Nela, um entrevistador pergunta por que ele escolheu aquela marca de cigarro. Ele responde: “Por que pagar mais caro se o Vila me dá tudo aquilo que eu quero de um bom cigarro? Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve Vila Rica”. De acordo com o criador do comercial, a proposta era associar a expressão “levar vantagem” à tomada de “decisões inteligentes” e fazer “boas escolhas”.
Mas, a criatividade popular fez outra associação: “levar vantagem” passou a ser sinônimo de pessoas astutas, que buscam obter benefícios sem se preocupar com questões éticas. Esta interpretação popular reforçou o sentido pejorativo da expressão esperto. Sergio Buarque de Holanda, no clássico livro “Raízes do Brasil”, apresenta uma diferenciação entre dois tipos de pessoas que estavam presentes na colonização brasileira: o aventureiro e o trabalhador. O aventureiro é aquele que “quer colher os frutos sem plantar as árvores”. É ambicioso e não se intimida diante dos obstáculos. Sabe transformá-los em trampolim: “vive dos espaços ilimitados, dos projetos vastos, dos horizontes distantes”. Nada pode detê-lo em seus propósitos. Sabe o que fazer e aonde quer chegar. Os meios justificam os fins. Vive no extremo oposto do tipo trabalhador, aquele que “enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o triunfo a alcançar”. Sob o abrigo da ética se esforça para vencer cada dificuldade do seu caminho sem precisar usar de artifícios para levar vantagem pessoal. Não precisa recorrer a cambalachos e negócios escusos que não resistem à luz da moralidade e da justiça.
Esperto vem do latim expergitu, que se traduz por inteligente, ativo, acordado, desperto, arguto e vivo. Na tradução literal, ser esperto é estar atento ao que está acontecendo no mundo. É a pessoa que pensa o presente à luz do futuro e que antecipa o futuro à luz do presente. Infelizmente, na cultura brasileira prevaleceu o sentido depreciativo. A língua portuguesa tem também a expressão “experto” com ‘x’, que vem do latim expertu. Experto é quem tem experiência conjugada com o saber, que adquiriu conhecimento ou habilidade na prática da vida. Na língua inglesa, é o ‘expert’, indivíduo que tem uma ‘expertise’. Como bem disse Lady Catelyn, a “primeira dama” do reino de Winterfell, ser esperto no sentido popular, ou astuto, nem sempre é ser sábio. Nossas relações sociais, nossas cidades, nosso mundo estariam bem melhor se tivéssemos menos ‘raposas’ que passam o tempo maquinando formas de levar vantagem em tudo e que “querem ficar com o santo e com a esmola”. Para alcançar um novo patamar civilizatório de cortesia, equidade e justiça – em um ambiente social marcado pela ética – vamos precisar do saber experimentado do experto e a vivacidade do esperto. Seja experto! Ou seria esperto?
Dr. Clovis Pinto de Castro, diretor da clínica Caminhos da Psicanálise.
Publicado em O Mundo visto pela Psicanálise, ed. 156 – 19 de maio de 2016.