Os profissionais da saúde deveriam preparar os pacientes para a morte?
Há menos de dois anos, nossa família viveu a perda de uma amiga. Uma jovem senhora de 47 anos. Como vizinhos, tínhamos uma convivência marcada pela presença – quase que cotidiana – de palavras e gestos de solidariedade, afeto e carinho. Era uma referência em termos de humanidade e amizade. Pelo seu jeito de ser, ela encarnava a verdade de um provérbio judaico: “mais vale um vizinho próximo do que um irmão distante”. Uma mulher carismática, afável, de fácil trato, alegre, repleta de sonhos.
Travava uma luta contra o câncer. No final de 2013, recebeu o diagnóstico que estava com um tumor no pulmão. Notícia que ninguém quer receber. Algo que tira o chão de qualquer pessoa. É em momentos assim que se percebe a fragilidade do existir. A vida passa a ter outro significado. Tempo para rever valores, escolhas, atitudes. O indivíduo passa a ter mais consciência do seu próprio corpo e dos limites da sua existência. Ela, aos poucos, foi assimilando o fato de estar enferma. Sabia que seu cotidiano seria diferente. Na expectativa de sua cura, seguiu à risca todos os procedimentos estabelecidos pelos profissionais da saúde. Mudou sua alimentação. Buscou ajuda espiritual. Contou com a solidariedade da família e dos amigos. Manteve, dentro do possível, sua atividade profissional. Não deixou de viver e de acreditar que poderia vencer a batalha contra o câncer. Manteve uma atitude saudável diante da enfermidade, da dor e do sofrimento. Não obstante todos os esforços, a doença progrediu e todos os procedimentos curativos foram perdendo poder.
Esse esforço, porém, não pode se restringir à família e aos amigos. Os profissionais da saúde também devem oferecer aos seus pacientes a dignidade da morte. O que se percebe é que poucos estão preparados para essa tarefa. Aprenderam nos cursos de medicina a buscar a cura e a manter seus pacientes vivos. Quando não obtêm sucesso, e a morte chega, já não sabem o que fazer e o que dizer. Sentem-se impotentes. Nossa amiga sentiu muitas dores nas últimas semanas de vida. Sua dor maior foi a de se sentir descartada pelos profissionais que deveriam acompanhá-la até o fim. Sua alta do hospital foi terceirizada. Quem deveria lhe dar alta, deixou um documento burocrático, com linguagem técnica, afirmando que os diferentes tratamentos não surtiram efeito, e encaminhando a paciente para cuidados domésticos paliativos. Em um procedimento “rotineiro”, a enfermeira entrou no quarto e entregou o documento. Após a leitura, nossa vizinha disse ao marido: “Olha só em que me transformaram! Fui reduzida a um simples papel onde consta: vá para casa morrer”. Foram para casa e aguardaram, por quatro dias, os cuidados paliativos prometidos. No quinto dia, em face de uma dor aguda, foi levada de volta ao hospital e, poucas horas depois, faleceu nos braços do esposo. A morte precisa se fazer mais presente nos cursos de “saúde”. Segundo Rubem Alves, há médicos que, diante da impossibilidade de cura, “saem da arena, derrotados e impotentes (…) se eles soubessem que sua missão é cuidar da vida, e que a morte, tanto quanto o nascimento, é parte da vida, eles ficariam até o fim. E, assim, ficariam também um pouco mais sábios”. A morte precisa se fazer mais presente nos cursos de “saúde”. Como dizia Michel de Montaigne, “ensinar as pessoas a morrer é ensiná-las a viver”. Pela dignidade da morte.
Dr. Clovis Pinto de Castro, diretor da clínica Caminhos da Psicanálise.
Publicado em O Mundo visto pela Psicanálise, ed. 167 – 22 de setembro de 2016.