“Família, família, vive junto todo dia, nunca perde essa mania”.

(Titãs)

“Famílias são todas iguais. Só mudam de endereço”. Essa expressão popular é usada para revelar as crises, os conflitos, as divergências e as contradições presentes em todas as famílias. Até os ‘deuses’ enfrentam as vicissitudes das relações familiares. Na mitologia de diferentes povos, é possível encontrar  histórias que retratam os dilemas da convivência em família.

Recentemente, entrei em contato com o mito de Hefesto, filho dos deuses gregos Zeus e Hera, que nasceu com uma deficiência física nos pés e nas pernas. Por ser uma deusa bela e formosa, e para não passar vergonha entre outros deuses e diante dos mortais, Hera resolveu livrar-se do menino, que era motivo de zombaria. Para os gregos, que cultuavam a perfeição do corpo, a deficiência física era vista como uma coisa grotesca. Hefesto foi jogado em um precipício e caiu no oceano. Acabou acolhido por Tétis, a rainha dos oceanos.

Hefesto ficou anos sob as águas e tornou-se um jovem talentoso e criativo. Tinha habilidade para lidar com o fogo e criar artefatos de ferro e de outros metais. Um dia, para se vingar da mãe, fez um trono de ouro. Ao sentar-se nele, Hera ficou presa por fios invisíveis. Nenhum deus foi capaz de libertá-la. Somente Hefesto poderia ajudá-la. Seus irmãos foram atrás dele, mas ele se recusava a sair das profundezas do oceano. Dionísio, deus do vinho e meio-irmão de Hefesto, conseguiu embriagá-lo e levá-lo ao Monte Olimpo, morada dos deuses. Mesmo estando de volta ao lar, continuava recusando-se a libertar sua mãe. Ele só a ajudou após receber a promessa de que poderia escolher como esposa a mais bela entre as deusas: Afrodite. Após esse episódio, Hera retomou sua relação com Hefesto, e este passou a defendê-la diante da violência de Zeus. Certo dia, ao ver a sua mãe sendo espancada, decidiu enfrentar o seu pai. Diante da atitude de Hefesto, Zeus resolveu atirá-lo novamente no precipício. Alguns anos depois, conseguiu voltar ao Monte Olimpo. E, surpreendentemente, perdoou os seus pais. Pela sua atitude, passou a ser reconhecido entre os deuses como um pacificador.

Hefesto foi vítima da ferida narcísica dos pais, que não souberam lidar com a ‘imperfeição’ do ser que geraram. Não tiveram coragem de assumir uma situação que fugia da ‘normalidade’ imposta pela convivência social. Ficaram com vergonha de expor Hefesto diante de outros deuses e humanos. O mito aponta também para o acolhimento que pode ocorrer fora do ambiente familiar. Tétis o recebeu com afeto e cuidado, e o transformou em um ser capaz de superar o desejo de vingança. A imagem de Hera presa em um trono de ouro por fios invisíveis pode nos levar a outra interpretação: paralisia da mãe diante do sentimento de culpa. A culpa é um elemento que impede, em muitos casos, o movimento de reparação e perdão.

Todos nós vivemos entre duas famílias. Há a família idealizada em nosso imaginário e a família real do cotidiano. A distância entre as duas pode ser enorme e causar frustrações. Quando aprendemos a diferenciar as duas, as cobranças diminuem e o respeito aumenta. Ser família é uma tarefa cotidiana. É um processo sempre aberto. Não há modelos prontos. A canção ‘Família’, da banda Titãs, aponta o retrato cotidiano das famílias ‘típicas’: homens e mulheres com medo, bebês chorando e exigindo atenção, filhos desejando sair de casa, mas o refrão afirma: “vive junto todo o dia, nunca perde essa mania”. É no enfrentamento do cotidiano que haverá mais chances de superar os conflitos presentes nas relações familiares. Não há mais espaço para o modelo de família estampada de forma estereotipada em comerciais de televisão – uma simples margarina ou um carro novo não podem transformar essas relações num palco de felicidade permanente. Não temos os poderes de Hefesto, mas podemos nos inspirar em seus diferentes movimentos – perdão, acolhimento, reparação – para qualificar a vida em família. Famílias não apenas mudam de endereço como também podem mudar seus laços socioafetivos.

Dr. Clovis Pinto de Castro, diretor da clínica Caminhos da Psicanálise.