Herbert de Souza, o Betinho, principal referência de combate à fome na década de 1990, dizia que “a modernidade criou um mundo menor que a humanidade”. Dito de outra forma: não cabe todo mundo no mundo. Há milhões de seres humanos que ficam de fora. São os seres sobrantes descartados pela lógica excludente de um projeto político e socioeconômico (neo)liberal.
Recentemente, os números da fome no Brasil foram atualizados. São 33,1 milhões de brasileiras e brasileiros passando fome todos os dias. Isso é fruto de uma política de “mercado” que se ergue, cada dia mais, como um (novo) deus onipresente e onipotente, e se diz capaz de resolver todos os problemas da humanidade. Como todo poderoso e salvador, promete um novo “paraíso” marcado pela “satisfação plena” de todos os “desejos” humanos. Na lógica voraz do “cada um por si” os laços sociais estão cada dia mais frágeis. Os conceitos de autonomia e de liberdade do indivíduo, marcas fundantes da modernidade, se transformaram em autossuficiência e independência em tempos pós-modernos. O narcisismo se torna a estrutura psíquica reinante. Perdido numa modalidade de narcisismo primitivo, o sujeito se identifica com o ‘eu ideal’, onde não se percebe castrado, acha que pode tudo, não aceita a falta e, assim, não é capaz de reconhecer o outro em sua alteridade.
Para o psicanalista Joel Birman, “a autoexaltação desmesurada da individualidade no mundo do espetacular fosforescente implica a crescente volatilização da solidariedade. Enquanto valor, esta se encontra assustadoramente em baixa. Cada um por si (…) parece ser o lema maior que define o ethos da atualidade (…). A solidariedade seria, assim, o correlato de relações inter-humanas fundamentadas na alteridade. Para isso, no entanto, seria necessário que o sujeito reconhecesse o outro na diferença e singularidade, atributos da alteridade”.
A fome reduzida a números e estatísticas escondem corpos, nomes próprios, raça. São seres humanos que devem ser contados na matemática da vida. Uma psicanálise que se quer à altura de seu tempo é chamada a se dizer nesse momento de sombras. Não há como ‘naturalizar’ algo que é da ordem do horror. Hoje, 33,1 milhões de brasileiros e brasileiras, em sua maioria crianças e mulheres, irão dormir com fome. A fome dói no corpo.
Clovis Pinto de Castro