O humor é uma das formas de enfrentamento do Real, do mal-estar da civilização. Freud escreveu dois textos sobre o tema: “O chiste e sua relação com o inconsciente” [1905] e “O humor” [1927]. No primeiro, coloca o chiste como uma das formações do inconsciente. Mostra suas implicações ademais da questão cômica. No segundo, estabelece um vínculo entre o Eu (Ego) e o Super-eu (Super-ego). Para Freud, o humor é fruto de uma estranha relação entre o Eu e o Super-eu: “esse Eu não é algo simples, ele abriga no interior, como seu núcleo, uma instância especial, o Super-eu, e às vezes os dois convergem de forma tal que não conseguimos diferenciá-los, enquanto em outras circunstâncias se distinguem agudamente”. No humor, o Super-eu torna-se mais condescendente com o Eu. Deixa de ser aquele “senhor severo” e permite um “pequeno ganho de prazer ao Eu”. Como herdeiro da instância parental, O Super-eu – por meio do humor – busca “consolar e proteger do sofrimento o Eu”. Freud afirma que o humor possui algo “de liberador (…) grandioso e exaltante”. É rebelde: “significa não apenas o triunfo do Eu, mas também do princípio do prazer”. Um Eu capaz de afirmar-se diante do sofrimento humano, das situações adversas. Um Eu que não nega a realidade. Não se coloca em fuga. Não se porta de forma reacionária ou regressiva.

Para a psicanalista Marília Brandão Lemos Morais, os humoristas são capazes de capturar a fragilidade dos seres humanos, “seus conflitos, sua finitude, sua dor e seu sofrimento, cravam as unhas no mal-estar, desviam do interdito e dali saem com um dito espirituoso que os faz rir de si mesmos, ou do outro, e faz o outro rir (…). Através do humor, todo poder constituído é gozado, as teorias perdem sua pomposidade, as religiões, as ideologias mostram sua face frágil e nua”.

O humor é da ordem de uma transgressão. Tem um poder, uma potência. A filósofa política Hannah Arendt distingue poder de força. Poder implica o encontro com os outros. Força é característica do ser humano isolado. Pressupõe a onipotência de um indivíduo ou grupo e a impotência dos demais. Na força não há lugar para as diferenças de qualquer ordem – raça, etnia, gênero, política, entre outras. O humor – como potência – pode ser uma das formas de enfrentamento do inominável do nosso tempo. Permite acolher a graça – em meio a tanta desgraça – para não ficar refém de uma vida sem graça.

Clovis Pinto de Castro, psicanalista
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