Recentemente, comprei uma televisão. Na hora de preparar a nota fiscal, o vendedor perguntou: “O senhor quer uma garantia estendida para mais dois anos? A gente divide em até doze parcelas sem juros”. Respondi: “Só se for pra mim com mais cinquenta anos de garantia e com pagamento parcelado”. Brincadeiras à parte, como psicanalistas sabemos que o humano – em seu corpo subjetivo – não conta com assistência técnica 24h, onde se possa levar a vida para ser consertada, trocar uma ou mais peças e, pronto, tudo novo. Por outro lado, para o corpo, em sua dimensão biológica, a medicina e várias áreas afins têm ampliado as possibilidades para a troca de peças. Substitui um osso por uma prótese. Troca coração, fígado, rim, olhos etc. Produz vacinas, fármacos que diariamente salvam milhões de vidas ao redor do planeta. Possibilitam uma vida com menos desconfortos e limites físicos. Inclusive, com as novas tecnologias, será cada dia mais comum criar órgãos artificiais em impressoras 3D.
Alguns transhumanistas acreditam que, em um futuro não muito distante, os corpos humanos serão indestrutíveis. Será? De qualquer forma, há um outro corpo que o sujeito carrega e sustenta. Um corpo em sua dimensão subjetiva, atravessado pela linguagem. Corpo inserido na cultura, no mal-estar da civilização. Corpo que não pode ser ‘consertado’ com reposição de peças. A medicina, por meio de tecnologias de ponta, pode eliminar ou minimizar as rugas de um rosto. Mas, é incapaz de lidar com as marcas, os traumas que o corpo subjetivo traz.
A psicanálise, logo de início, priorizou esse corpo. Um corpo que não precisa ser consertado. Só precisa ser escutado. Como disse Anna O., a paciente que inaugurou a psicanálise: “Deixa eu falar, deixa eu limpar a minha chaminé”. Ainda hoje, cabe a cada psicanalista oferecer esse espaço de escuta. Acolher o sujeito em seu sintoma. Não para consolá-lo ou para se identificar com sua queixa. Muito menos para consertá-lo. O que se espera ao final de um processo analítico é que o sujeito saiba lidar com seus sintomas e esteja em condições de concertar: criar uma sinfonia única para se sustentar na vida.
Clovis Pinto de Castro
Dagmar Silva Pinto de Castro