Educar sempre foi uma tarefa exigente. Para o psicanalista Jacques Lacan, “as pessoas não percebem muito bem o que querem quando educam e são tomadas pela angústia quando pensam no que consiste ensinar”[1]. Quem lida com a educação corporativa também enfrenta esse dilema, especialmente quando ela se restringe aos manuais prescritivos, às metodologias engessadas ou às novas tecnologias. Não quer dizer que tudo isso seja dispensável, pelo contrário, a competitividade de uma empresa depende disso também. Há certas coisas que exigem o “saber fazer” e precisam ser transmitidas e ensinadas. Entretanto, dominar o know-how não é suficiente. Recentemente, o Fórum Econômico Mundial, que reúne anualmente em Davos, Suíça, as principais lideranças políticas e empresariais do mundo, alertou para os limites de um conhecimento técnico que não considere os principais dramas da humanidade. O tema de 2018 foi: Criando um futuro compartilhado em um mundo fragmentado[2]. É uma temática que fala por si mesma. As empresas têm o desafio de incorporar em suas agendas a precariedade de um mundo em agonia. Já não é mais opção. É uma questão de sobrevivência do mundo e, inclusive, das próprias empresas.
Hannah Arendt, já em meados do século XX, destacava o divórcio entre o conhecimento técnico-científico e a capacidade reflexiva: “pode vir a suceder que nós, criaturas humanas que nos pusemos a agir como habitantes do universo, jamais cheguemos a compreender, isto é, a pensar e a falar sobre aquilo que, no entanto, somos capazes de fazer”[3]. Dito de outra forma: os seres humanos sabem fazer coisas incríveis, mas têm enormes dificuldades de pensar sobre o que criam, o mundo para que criam e o que fazer com os desdobramentos de suas criações. O conhecimento técnico, sem reflexão e criticidade, não requer educação. Demanda apenas a instrução[4]. Isso nos remete à uma diferenciação fundamental entre ensino e educação. No senso comum, são expressões usadas como sinônimo, até porque podem ser consideradas duas faces de uma mesma moeda.
Ensino está vinculado à formalidade dos processos de aprendizagem. Pressupõe a articulação de conteúdos previamente selecionados. Esses conteúdos podem estar vinculados a um projeto mais amplo da empresa, como um todo, ou de uma área específica. Cabe aos especialistas da área de treinamento e desenvolvimento, ou de áreas afins, organizar e articular o conteúdo que precisa ser transmitido e “garantir” a eficácia do processo. Para isso, a avaliação é parte importante, pois, na perspectiva do ensino, as pessoas precisam ser “medidas” e “avaliadas”. Passam ou reprovam. No mundo corporativo, ensino e instrução quase não se diferenciam. Tanto no ensino como na instrução, tudo deve estar “planejado”. O ensino pode ser “formatado”. E é por meio dele que as empresas “formam” uma mão de obra especializada, apta a “reproduzir” procedimentos, usar determinadas ferramentas, operar equipamentos, lidar com diferentes tecnologias etc.
E a educação? É um processo mais amplo. Não se restringe ao ensino. Deve transcendê-lo. Educação é algo que perpassa as nossas vidas desde o nosso nascimento. Na educação o foco não está no acúmulo de conhecimento, no domínio de fórmulas, na memorização de técnicas ou procedimentos. A educação tem a ver com tudo aquilo que nos prepara para o enfrentamento da vida. Ela possibilita o fortalecimento de valores éticos que fundamentam a presença dos indivíduos no espaço público. Exige criticidade, capacidade reflexiva. Por meio dela, se desenvolve a consciência de que há um planeta comum e sensível, partilhado com outros bilhões de seres humanos. A educação permite desenvolver uma visão alargada e ajuda a perceber a diversidade de raças, culturas, línguas e maneiras diferentes de estar no mundo. A pessoa educada – e não apenas “formatada” e “instruída” – consegue se mover pela curiosidade, pela abertura ao novo e pelo encantamento. Não depende de salas de capacitação, cursos, avaliações sistemáticas. A educação requer uma postura de abertura diante da vida. Quanto mais o indivíduo colocar de si e de sua singularidade nesse processo, mais abundante ela será.
Pensar – diferente do que muitos imaginam – pressupõe um exercício de desaprendizagem. Para o psicanalista Jorge Forbes: “Saímos de uma época em que queríamos facilitar a aquisição da aprendizagem e entramos na época do aprender a desaprender, a suportar a falha no saber e o risco dela decorrente”[5]. Se aprender é difícil, desaprender é muito mais. Todos têm o seu jeito de fazer as coisas. Agem com base no saber que acumularam. Entretanto, um conhecimento que foi importante em determinados contextos da vida pessoal e profissional pode perder o seu prazo de validade. As pessoas que se fecham em si mesmas, em seus saberes previamente adquiridos, têm mais dificuldades para se abrirem à possibilidade do novo. Desaprendizagem só é possível para quem se sabe incompleto. Pessoas completas não aprendem devido à incapacidade de desaprenderem. O pensar possibilita o lançar-se à experiência do ensaio e do erro. É agir no risco e na aposta sem repetir respostas clichês.
Desaprender é pensar criticamente para além do senso comum. Parar de responder às demandas que já venceram. Ter coragem para desacreditar nas “verdades” que vão sendo impostas. É perceber que sempre há um porquê, um algo além. É o princípio da suspeita, da curiosidade. Colocar em dúvida se as bússolas que nos guiaram até aqui serão eficazes para nos orientar no futuro. Opiniões derradeiras não existem. Sempre há espaço para o novo. Desaprender é criar uma nova forma de ver e habitar o mundo, ou melhor, um novo mundo.
Jorge Forbes afirma que vivemos em Terra Dois. Geograficamente, é idêntica à Terra Um, e seus moradores são bem parecidos. Só isso. Em todos os demais aspectos – cultural, socioambiental, econômico, político, jurídico –, ela já não é a mesma. Segundo ele, “do nascimento à morte, passando por todas as etapas da vida: educar, estudar, amar, casar, trabalhar, procriar, profissionalizar, divertir, aposentar, tudo é radicalmente diferente”[6]. Terra Dois expressa as consequências e demandas da pós-modernidade. Quais são as principais alterações entre o mundo moderno e o pós-moderno, entre Terra Um e Terra Dois? Um quadro comparativo e sintético, com as principais diferenças, ilustra bem isso.
Principais alterações entre Terra Um e Terra Dois
TERRA UM | TERRA DOIS |
Ordem vertical | Ordem horizontal |
Orientação paterna | Articulações coletivas |
Verdade | Certezas temporárias |
Da impotência à potência | Da impotência ao impossível |
Diálogo | Monólogos articulados |
Raciocinar | Ressoar |
Estático | Interativo |
Consenso | Radicais diferenças |
Treinamento | Experiências |
Avaliação | Responsabilização |
Adversidade | Oportunidade |
Razão Objetiva | Razão sensível |
Futuro: projeção do presente | Presente: invenção do futuro |
Fonte: Jorge Forbes[7].
Percebem-se algumas alterações radicais entre esses dois mundos. Os mapas orientadores dos séculos passados, especialmente do século XX, envelheceram. Essas mudanças profundas na maneira de habitar o mundo exigirão, cada dia mais, uma capacidade reflexiva (razão sensível e não objetiva) que permita enxergar a realidade de forma holística. As empresas precisarão de executivos que saibam incorporar um pensar que ultrapasse os limites de um mundo orientado pelas tecnologias e marcada por uma razão técnica-econômica. Terão necessidade de profissionais que consigam navegar em meio ao nevoeiro de um novo tempo. Freud, diante da complexidade de sua época, dizia que não se pode educar “como quem envia pessoas para uma expedição polar com roupas de verão e mapas dos lagos italianos”[8]. A humanidade enfrentará muita neblina pela frente e não poderá contar com uma “operação comboio” que a leve em segurança. Para estar à altura das demandas do século XXI, a educação corporativa não poderá se restringir às receitas envelhecidas dos séculos passados. Em um mundo horizontalizado, onde parte significativa das novas gerações foi educada em um ambiente não mais pai-orientado, as empresas e os diferentes atores que as constituem deverão colocar de si na invenção de respostas singulares.
Clovis Pinto de Castro
[1] LACAN, Jacques (1974). Entrevista inédita de Jacques Lacan. Entrevistador: Emilio Granzotto. Entrevista concedida à Magazine Littéraire, Paris, n. 428, fev. 2004. Tradução: Marcia Gatto. Disponível em: <https://pontolacaniano.wordpress.com/2008/03/31/entrevista-inedita-de-jacques-lacan-a-revista-italiana-panorama-1974/>. Acesso em: 18 mar. 2018.
[2] WORLD ECONOMIC FORUM. The future of education, according to experts at Davos. 2018. Disponível em: <https://www.weforum.org/agenda/2018/01/top-quotes-from-davos-on-the-future-of-education/>. Acesso em: 19 mar. 2018.
[3] ARENDT, Hannah (1958). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p.11.
[4] KUBRIVC, Simone. Trilhas entre o passado e o futuro: considerações sobre a tarefa de educar. VERAS: Revista Acadêmica de Educação do ISE Vera Cruz, [s.l.], v. 1, n. 2, 2011. Disponível em: <http://site.veracruz.edu.br/instituto/revistaveras/index.php/revistaveras/article/view/51>. Acesso em: 18 mar. 2018.
[5] FORBES, Jorge. Aprendendo a desaprender. 2003. Disponível em: <http://www.jorgeforbes.com.br/br/artigos/aprendendo-a-desaprender.html>. Acesso em: 21 mar. 2019.
[6] FORBES, Jorge. A clínica psicanalítica de TerraDois: o sinthoma. 2016. Disponível em: <http://www.jorgeforbes.com.br/br/cursos-e-conferencias/a-clinica-psicanalitica-de-terradois-o-sinthoma.html>. Acesso em: 18 mar. 2018.
[7] FORBES, Jorge. Ciclo de debates: sucesso & felicidade. Revista FAAP, São Paulo, ago./set., 2017. Disponível em: <http://www.ipla.com.br/assets/files/Editorias/Acontece/FAAP295_debate.pdf>. Acesso em: 18 mar. 2018. p.12.
[8] FREUD, Sigmund (1930). O mal-estar da civilização. v. 8. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 106-107.