“Quem já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte. O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe. Nesse estado, além da tranquila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão, tão leve. É uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não perguntem o quê, porque só posso responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se. E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente”.
A citação acima, da Clarice Lispector, está nos livros “A descoberta do mundo” e “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”. Não me arriscaria a traduzir o que ela entende por estado de graça. Posso, a partir daquilo que me tocou, fazer algumas aproximações. Imagino que sejam aqueles momentos em que há uma “sensação” de se colocar fora das amarras do tempo cronológico, onde tudo é medido, cronometrado. Tempo da aferição, do controle, da avaliação. Entendo estado de graça como pequenas brechas no tempo. Brechas que nos permitem respirar. Como afirma Clarice Lispector: “Nesse estado, além da tranquila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão, tão leve”. Não se trata da lucidez racional: “é uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe”. Saber sem compreensão. Fora da esfera da utilidade: “não é usado para nada”. Saber que sustenta a impossibilidade de se eternizar um “estado de graça”.
Clovis Pinto de Castro