“Olhei até ficar cansado
De ver os meus olhos no espelho
Chorei por ter despedaçado
As flores que estão no canteiro.”
A canção “Flores”, da banda Titãs, toca em uma questão fundamental para a psicanálise: a finitude humana. Trata-se de uma morte simbólica. Alguns a interpretaram como sendo a narrativa de um suicídio. E, nesse caso, é o próprio morto quem ‘narra’ o que está ‘vendo’ e ‘sentindo’ a partir de sua ‘visão’ e posição – de dentro do esquife: “os punhos e os pulsos cortados e o resto do meu corpo inteiro; há flores cobrindo o telhado e embaixo do meu travesseiro; há flores por todos os lados, há flores em tudo que eu vejo (…) as flores têm cheiro de morte”.
A constatação “olhei até ficar cansado de ver os meus olhos no espelho” é o indício de um sujeito preso em um espelhamento identificatório com o Outro. Deve ter vivido para atender demandas que não eram suas. Não conseguiu sustentar o seu próprio desejo. A(morte)cido, o sujeito não suporta o que tem vida: “chorei por ter despedaçado as flores que estão no canteiro”. Busca a ‘segurança’ no inautêntico: “as flores de plástico”. Lembro-me de uma breve ilustração que li em um livro sobre pós-modernidade no final da década de 1970. É um diálogo entre duas amigas: “que criança linda” – disse a amiga à mãe da garota – “isto é porque você não viu a fotografia dela a cores”. Hoje, poderíamos acrescentar: “a cores e com filtros”. Trata-se de um simulacro. Quando a cópia se torna mais importante do que o original. O ‘parecer ser’ ocupa o lugar do ‘ser’: as flores de plástico são mais perfeitas do que as flores do canteiro. O ‘click’ capta o instante ‘perfeito’ de um mundo ‘imperfeito’. É como se fosse possível suspender a vida – com todos os seus dramas – e usufruir apenas dos momentos mágicos, artificiais e da ‘felicidade plena’. Essa fantasia de um mundo perfeito e infinito é o maior impeditivo que alguns encontram para dar conta da complexidade da vida.
A canção termina com a seguinte frase: “as flores de plástico não morrem”. É fato. Também não vivem, não exalam perfumes, não envelhecem e não precisam de cuidados. Ficam circunscritas à dimensão estética dos simulacros. Em alguns casos, podem até ser bonitas e terem a aparência das flores naturais, mas já nascem mortas! São formas artificiais de viver a vida numa sociedade que hiper valoriza as aparências e as relações descartáveis. As flores de plástico como metáfora das tentativas de eternizar aquilo que é efêmero e de driblar o que é próprio da natureza humana: a mortalidade. Nascemos, crescemos e morremos. São os ciclos naturais da vida. Somos flores originais, singulares, mesmo que por tempo limitado. Como afirma Freud “Vemos desaparecer a beleza do rosto e do corpo humanos no curso de nossa vida, mas essa brevidade lhes acrescenta mais um encanto. Se existir uma flor que floresça apenas uma noite, ela não parecerá menos formosa por isso” [A transitoriedade, 1916]. A atriz Fernanda Montenegro, certa vez quando indagada por um repórter: “você já fez alguma plástica?”, disse: “não, pois estas rugas me custaram muito”. Simbolicamente, cada ruga traz à sua memória cenas da vida como ela é, com momentos de alegria e encantamentos, e, também, com dor e sofrimento. Como afirma Fernando Pessoa: “Tudo quanto vive perpetuamente se torna outra coisa, constantemente se nega, se furta à vida”.
Clovis Pinto de Castro