“Não sou a favor da fabricação de visões do mundo. Isso deve ser deixado para os filósofos, que confessadamente acham inexequível a jornada da existência sem um guia de viagem como esse, que informa sobre tudo. Aceitemos humildemente o desprezo com que eles nos olham, do alto de sua sublime carência. Mas, como também não podemos negar nosso orgulho narcísico, acharemos consolo na reflexão de que todos esses “guias de existência” envelhecem rapidamente, de que é justamente nosso trabalho miúdo, estreito e míope que torna necessárias novas edições deles, e de que inclusive os mais modernos desses guias são tentativas de achar substituto para o velho catecismo, tão cômodo e tão completo. Sabemos que até agora a ciência pôde lançar muito pouca luz sobre os enigmas deste mundo; o barulho dos filósofos nada mudará isso, apenas a paciente continuação do trabalho que tudo subordina à exigência de certeza pode gradualmente produzir mudança. Ao cantar na escuridão, o andarilho nega seu medo, mas nem por isso enxerga mais claro”.
Recorto esse breve trecho do texto Inibição, Sintoma e Angústia II [1926], onde Freud – mais uma vez – reforça sua crença no triunfo da ciência sobre a religião e demais áreas do saber que criam “guias de existência” ou “guias de viagem” e “informam sobre tudo”. Oferecem rumo, sentido, propósito e direção ‘segura’. Invariavelmente, se colocam como ‘garantidores’ da jornada. “Faça isso ou faça aquilo e você será feliz e vitorioso”. Como são da esfera de uma idealização (visa a adequação a um ideal), a ‘culpa’ pelo não cumprimento daquilo que o ‘guia’ impõe recairá sempre sobre a ‘incapacidade’ do sujeito. Os ‘guias de existência’ são da ordem do padrão universal. Servem pra todos. Não levam em conta o inconsciente e a subjetividade humana. Não há espaço para o desejo. Ao contrário, o desejo deve sempre ser domesticado pelos padrões morais. Em uma direção oposta, a psicanálise se pauta pela ética do desejo inconsciente. O sujeito deve se implicar em seu desejo e lidar com o estranho que o habita. As respostas não estão prontas. Devem ser criadas. Como afirma o psicanalista Jorge Forbes, cabe a cada um(a) inventá-las e se responsabilizar por seus desejos e suas escolhas. Não há catecismo que possa nos salvar. E, diferente do que Freud acreditava (influenciado pelo Positivismo de sua época), nem mesmo a ciência é um ‘guia’ garantidor das ‘certezas’. Como percebeu Jacques Lacan, na década de 1970, há também um não saber na ciência, um furo, um inominável, algo que escapa. Resumindo: não há receitas e nem garantias a priori. Ainda bem!
Clovis Pinto de Castro