“O destino de tudo é futuro, no arco do movimento de tudo,
as coisas navegam na direção de um porto que não chega nunca, uma vez que cada porto é uma véspera de porto.”
(Hélio Pellegrino)

Gosto de contemplar horizontes. De observar o céu tocando a terra ou o mar entrelaçado com o céu. Quando morava em Santos, no final do dia, costumava fincar os pés na areia, observar o horizonte e sentir o movimento das águas tocando o meu corpo. Vinha sempre à minha mente uma afirmação de André Gide: “para descobrir novos oceanos é preciso ter a coragem de perder a praia de vista”. Tenho uma amiga, com excelente formação acadêmica, que, recentemente, aos 30 anos, abandonou uma carreira promissora em um banco privado para conhecer novos oceanos e aportou do outro lado do mundo – Austrália. Desejava vivenciar uma nova cultura, aprimorar o seu inglês, especializar-se em sua área profissional. Aspirava um tempo de autoexílio para estar mais próxima de si. Não foi uma decisão inconsequente. Fez uma poupança, deixou de gastar dinheiro com coisas supérfluas, vendeu seu carro, ia ao trabalho de bicicleta, buscou qual seria o melhor curso e instituição para estudar, pesquisou os custos para sobreviver em um novo mundo. Teve a “coragem de perder a praia de vista”, seu porto seguro. Como consequência, foi agraciada com a vista de novas praias e a (in)segurança de novos portos.

De lá, já contempla novos horizontes. Ao concluir a primeira etapa de seu curso, foi aprovada com distinção por se destacar entre os melhores alunos da turma. Está sendo desafiada a ingressar em outro curso, no qual poderá aprofundar seus estudos e pesquisas. Há pouco tempo, em uma troca de mensagens, ela disse: “estou vivendo um momento único e não gostaria de desperdiçá-lo”. No livro “Lucidez Embriagada”, o psicanalista Hélio Pellegrino afirma que “o ser humano não se contenta jamais em dissolver-se, extático, na circunstância que o rodeia”. Segundo ele, somos “incompletude radical, permanente tarefa de ser, construção inacabada cujo projeto é inacabar-se”.

Recentemente, lembrei-me de minha amiga ao assistir ao filme francês “Os Sabores do Palácio”. Relata parte da vida de Hortense Laborie, mulher francesa que soube descortinar horizontes. Tornou-se famosa por ter sido a primeira mulher a ocupar a posição de chef no Palácio do Eliseu, com a incumbência de preparar as refeições do presidente francês. Há uma cena no filme que se coloca como metáfora da incompletude humana. Hortense estava em pé, junto com algumas pessoas, em uma pequena embarcação, despedindo-se dos amigos que continuariam numa base francesa na Antártida. Todos estavam acenando para os que permaneceriam na base. De repente, ela se distancia do grupo e vai para o lado oposto do barco e coloca seus olhos no horizonte. Seu olhar repousa no que virá como projeção de seu desejo. Em uma linha indivisível – onde o céu se encontra com o mar – ela vislumbra o lugar do seu desejo. Espaço onde viveria novas rotinas para ganhar o pão com o suor de seu rosto e de seus sonhos. 

Para Pellegrino, “suando no rosto do seu sonho, o ser humano se esvazia de si, de sua ilusória abastança narcísica”. Descobre-se um ser em movimento, transcendente, desejante. Navegamos sempre “na direção de um porto que não chega nunca, uma vez que cada porto é uma véspera de porto”. Há sempre – no horizonte existencial – algo que nos convoca. Sonhos a serem sonhados. Horizontes a serem conquistados. Pellegrino complementa: “o sonho é a verdade do mundo, insônia de Deus – em nós”.

Dr. Clovis Pinto de Castro, diretor da clínica Caminhos da Psicanálise.