Tenho um primo que, na infância, adorava desenhar. Transformava as calçadas no seu ateliê. Quando o dinheiro sobrava, usava gizes de várias cores. Na falta, usava carvão ou qualquer outro material para dar vida à sua imaginação. Desenhava também em cadernos ou folhas soltas, inclusive, em sacos de papel de padaria. Na família, todos ficavam admirados diante de tanta criatividade. Lembro-me de seus desenhos de motos, carros, aviões, entre tantos outros. Todas as vezes que concluía uma de suas criações, começava a pular e ficava alguns minutos (e)ternos em êxtase diante do fruto de suas mãos.

A alegria dele era suficiente para nós dois, pois eu não conseguia expressar, mesmo que em linhas mais rudimentares, o mundo imaginativo que habitava dentro de mim. Achava que ele se transformaria em um artista de renome nacional e internacional. Mas, na nossa época, a vida adulta chegava antes da hora, especialmente para as crianças pobres. As brincadeiras e os sonhos eram interrompidos pelo trabalho precoce. A necessidade de ajudar os pais no sustento da casa sequestrava nossa infância. Aos poucos, as calçadas deixaram de ser telas que testemunhavam o encantamento e a criatividade, e se tornaram o chão duro e cinzento que marcava seus passos em direção a outro mundo, onde a criação cedia lugar aos atos repetitivos. Sua mente e seu corpo sofreram o impacto de processos de adestramento e foram enquadrados em outra lógica. Nunca mais vi meu primo desenhar ou pintar. A passagem brusca para o mundo adulto subtraiu sua criatividade. O aspecto lúdico da inventividade cedeu lugar à rigidez da vida.

As crianças habitam o mundo da imaginação criativa. Elas têm a capacidade de descobrir as formas, as cores, as texturas e os movimentos que vão configurando a forma como se expressam no mundo. A criatividade é algo que faz parte da condição humana. As crianças nascem com essa potência.

Todavia, correm o risco de perdê-la aos poucos pela presença limitadora daqueles que estão próximos delas. Rubem Alves afirma: “Que felicidade encontrei na minha infância, solto por espaços vazios de olhos adultos”. Alberto Caeiro, em um de seus poemas, narra um sonho sobre a revolta de Jesus com a seriedade do céu, onde tinha que viver como adulto. Ele decide fugir e descer à terra: “Veio pela encosta de um monte, tornado outra vez menino a correr e a rolar-se pela erva, e a arrancar flores para as deitar fora, e a rir de modo a ouvir-se de longe”.

Inspirado em Jacob Boehme, filósofo e místico luterano alemão, Rubem Alves diz que “perdemos o Paraíso quando deixamos de ser crianças brincantes e nos tornamos adultos trabalhantes”. Sempre há tempo, mesmo na idade adulta, para recuperar a dimensão lúdica que pode ter se perdido com o passar dos anos. No dia das crianças (e em todos os outros) somos convidados a fazer um recorte no nosso cotidiano para observar as crianças que correm, brincam e transformam as calçadas e os parques em ateliês e oficinas da imaginação.

Dr. Clovis Pinto de Castro, diretor da clínica Caminhos da Psicanálise.