Paul, ao não querer ser cópia de si mesmo, está pronto – numa linguagem lacaniana – para ‘fazer-se tolo de um Real’
“Minha principal preocupação é não copiar o que fiz no passado.”
(Paul McCartney)
Paul McCartney, quando do lançamento do álbum “New”, com composições inéditas, enfatizou que produziu algo com sabor de novo. Ao ser questionado por jornalistas sobre nostalgia e a relação entre o ‘novo e o velho’, afirmou: “Num mundo impossível, seria legal se as pessoas não soubessem o que já fiz. Em geral as pessoas procuram no que estou fazendo uma continuação de todo o resto. Não esquento muito com isso. Minha principal preocupação é não copiar o que fiz no passado”. Por tudo o que viveu e construiu ao longo de sua carreira de sucesso, Paul McCartney poderia viver do passado. Além de ter sido um dos ‘meninos’ dos Beatles, é considerado pelo livro dos recordes (Guinness Book) como o “artista de composição e gravação mais bem-sucedido de todos os tempos“. São mais de 100 milhões de álbuns vendidos mundialmente.
Paul conquistou a fama ainda jovem e, ao contrário de muitos artistas, soube se reinventar ao longo dos anos. Optou por não transformar as glórias de outros tempos no seu eterno presente. Isso não significa que tudo o que fez e viveu tenha perdido sentido. Ele apenas não quer ser a cópia de si mesmo. Suas memórias lhe servem de inspiração para o presente e são como um alicerce para a construção de seus novos trabalhos. Durante a entrevista Paul disse: “Já me peguei sentado com minha guitarra pensando: vou escrever uma nova ‘Eleanor Rigby’. Mas, em seguida, penso: Ah, não farei isso“. Paul tem clareza do tempo vivido. Sabe que as condições que o levaram a compor a canção ‘Eleanor Rigby’ eram próprias de um tempo singular que não se repetirá. As circunstâncias históricas não são mais as mesmas e ele vive outro momento de sua trajetória musical. Paul McCartney fala do perigo permanente de rotular outras bandas inglesas de sucesso como os “novos Beatles”. Segundo ele, “pode ser o beijo da morte porque as pessoas esperam que estejam à altura do que fizemos. E nós fizemos o que fizemos em um período particular, que era muito diferente de agora. Não sei se era mais fácil manter um grande sucesso na época, mas era diferente”. Nesta observação, Paul revela outro perigo: ser cópia dos outros. Se não devemos nos repetir e sermos cópias de nós mesmos, muito menos dos outros.
No caso do Paul McCartney, sua sensibilidade artística perene se refina gradualmente e toma diferentes formas a cada novo álbum. Ao mesmo tempo em que se aprimora como compositor, músico e cantor, não perde a capacidade de contemplar o horizonte cotidiano e, a partir desse entrelaçamento com a vida, fazer poesia e transmitir pela arte a maneira como enxerga o mundo. Ele não perdeu a capacidade de se encantar com a vida e de se interrogar diante de novos acontecimentos. É hábil na arte de expressar sentimentos e fatos por meio de canções que se eternizam, como ‘Let it Be’ e ‘Yesterday’, que estão entre as músicas mais tocadas do mundo, regravadas por dezenas de outros cantores, e que fazem sucesso a cada nova geração.
Paul, ao não querer ser cópia de si mesmo, está pronto – numa linguagem lacaniana – para ‘fazer-se tolo de um Real’. Ele suporta as variações da vida e revela, em sua singularidade, que a tolice – e não as certezas – é que nos salva. Que as glórias ou vitórias do passado não ofusquem a beleza daquilo que ainda está por vir em nossas vidas.
Dr. Clovis Pinto de Castro, diretor da clínica Caminhos da Psicanálise.
Publicado em Instituto de Psicanálise Psicanálise Lacaniana – IPLA – 18 de agosto de 2016.