Em um momento onde práticas racistas se proliferam no Brasil e em outros cantos do mundo, presto uma homenagem ao meu sogro: um homem simples, criado no campo em condições precárias e que, por conta própria, foi atrás de saberes que lhe dessem uma visão mais ampla do mundo. Por ser negro, pobre e por lutar por um país mais justo, sofreu na carne os horrores da perseguição política e do preconceito racial.
Sebastião Francisco da Silva, ainda jovem, morando no campo, próximo das cidades de Xavantes e Palmital, no interior de São Paulo, se filiou ao Partido Comunista do Brasil e ajudou a fundar o Sindicato dos Trabalhares Rurais da região. Por perseguição política, deixou o campo e conseguiu um emprego na Rede Ferroviária Federal em Ourinhos. Em decorrência de novos ‘problemas’ políticos, foi transferido para Londrina. Apesar das perseguições, continuava como membro do Partido Comunista. Logo após o Golpe Militar, ele ficou desaparecido por um tempo.
Quando voltou para casa, se trancou no quarto com a Dona Isabel, minha sogra, e choraram muito. Na memória dos filhos, ecoa ainda hoje o apelo da mãe: “Bastilho – como ela o chamava – lembre-se que temos 9 filhos para criar”. Naquela mesma noite, quando os filhos estavam dormindo, foi ao quintal e colocou fogo em documentos e livros considerados ‘proibidos’ pelos militares. Ele era autodidata. Lia autores clássicos da filosofia e da política, entre eles, Immanuel Kant, Friedrich Nietzsche e Karl Marx. Para preservar parte de sua memória, guardou alguns livros e documentos em uma mala e a escondeu debaixo do assoalho de sua casa. Na época, o silêncio e o medo tomaram conta da família. Vários amigos pararam de frequentar a casa. Nem por isso deixou de dialogar com jovens universitários sobre o impacto da filosofia e da política no cotidiano do país.
A herança mais preciosa que a minha companheira ganhou de seu pai, além da formação ética e do senso de justiça, foi um dos livros que ele havia escondido naquela mala: “Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche. Ele disse: “Guarde com carinho e deixe para ler quando você estiver na faculdade”. Sou grato por ter sido impactado em minha adolescência pelo testemunho do meu sogro. Hoje, testemunhamos nas nossas filhas o mesmo compromisso por um mundo mais justo, acolhedor das diferenças e onde caibam todos sob o manto da justiça e do direito. Enquanto família, aprendemos com o Sr. Sebastião que ninguém pode construir, em nosso lugar, como dizia Nietzsche, “as pontes que precisamos para atravessar os rios da vida”. Cada um inventa a sua!
Clovis Pinto de Castro