Não é fácil virar santo ou santa. Há processos rigorosos que precisam ser vencidos em diferentes níveis e etapas. Irmã Dulce, agora Santa Dulce dos Pobres, percorreu esse caminho. Entre os requisitos, eram exigidos dois milagres ─ daqueles que a ciência não explica.

O psicanalista Marcelo Veras, ao falar sobre a canonização da irmã Dulce em um post recente no Instagram, trata o milagre como “uma verdade que emerge e fura o saber da ciência (…) é o furo no saber, é o real que irrompe no corpo imaginário sem jamais ser convertido pela norma fálica do Nome-do-Pai”. Veras nos inspirou a abordar a questão do milagre em outra perspectiva. É o milagre em sua concepção pública e política. Hannah Arendt, filósofa política do século XX, tem uma compreensão de milagre que ultrapassa o âmbito transcendental. São os milagres que acontecem na esfera pública, vistos como “interrupções de uma série qualquer de acontecimentos, de algum processo automático, em cujo contexto constituam o absolutamente novo”.

Este tipo de milagre demanda alguém que irrompa no espaço público e inicie, pela palavra, algo absolutamente novo, interrompendo processos automatizados que negam a vida e a dignidade de milhões de pessoas. É uma ação testemunhada pelos contemporâneos que, nesse caso, são impactados e dão continuidade ao milagre na esfera pública. Mais do que a individualidade dos milagres pessoais, irmã Dulce foi o milagre, como alguém absolutamente humano, que instituiu a liberdade em ação. Como diz Arendt, nem antes e nem depois.

Resgatamos aqui um exemplo clássico de milagre nessa concepção. É a história de Rosa Parks, uma negra que, em um ônibus nos anos de 1950, numa pequena cidade dos Estados Unidos, voltando para casa depois de mais um dia de trabalho, resolveu sentar em um dos bancos reservados aos brancos. Rosa Parks recusou-se a se levantar para que um homem branco pudesse sentar-se. Uma confusão generalizada se instalou por causa da sua atitude. Ônibus parado, chegada das autoridades policiais, envolvimento da imprensa e da igreja local. Foi presa e multada. Algo que poderia ter ficado restrito a mais um ‘pequeno incidente’ dentro de um ônibus alcançou o espaço público.

Parks, por meio de sua ação no espaço público, produziu um milagre considerado decisivo para o movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Ao comentar sobre o ocorrido, ela disse: “alguns acham que não me levantei só porque estava cansada, não é verdade. Eu não estava cansada, ou pelo menos não mais do que depois de qualquer outro dia de trabalho. Mas eu estava cansada de desistir”.

Que o testemunho dessas mulheres continue inspirando pessoas, comunidades e movimentos na produção dos pequenos milagres no espaço público. Pequenos apenas quando começam, pois eles têm duas características: irreversibilidade e imprevisibilidade. Essas mulheres criaram respostas singulares. Não ficaram na repetição. Inventaram uma resposta para aquilo que as angustiavam. Mais do que inventar, elas sustentaram e se implicaram na decisão que tomaram.

 

Dagmar Silva Pinto de Castro e Clovis Pinto de Castro, Clínica Caminhos da Psicanálise.