“Via de regra enfatizamos a natureza casual da morte, um acidente, uma doença, infecção ou idade avançada, e desse modo traímos o nosso empenho em vê-la como algo fortuito, em vez de necessário. Um grande número de mortes nos parece terrível ao extremo” (…) “Não é mais possível negar a morte; temos de crer nela. As pessoas morrem de fato, e não mais isoladamente, mas em grande número, às vezes dezenas de milhares num só dia. Isso já não é acaso”.
As citações acima estão no texto “Considerações atuais sobre a guerra e a morte”, escrito por Sigmund Freud, em 1915, no contexto da Primeira Guerra Mundial. A sensação para quem lê hoje é de que são palavras escritas recentemente. Logo no início do texto, em função do mal-estar provocado pela guerra, Freud diz: “ficamos nós mesmos perdidos quanto ao significado das impressões que se abalam sobre nós e quanto ao valor dos julgamentos que formamos (…) sentimos o mal desse tempo com intensidade desmedida”. Não é um pouco assim que parte da população brasileira e mundial se sente em tempos de pandemia? Com uma dor (des)medida diante da morte? É comum entre os humanos a tentativa insistente, como alerta Freud, de “excluir a morte do cálculo da vida” e, assim, driblar a finitude. Algo que a pandemia colocou em xeque. Trata-se agora da morte aos milhões, transmitida ao vivo e em cores. É da esfera do inusitado, do imprevisível. Pegou o mundo no contrapé. Se inicialmente estava na dimensão do acaso, coisa não prevista, aos poucos foi se transformando em descaso nas mãos das principais lideranças políticas do país. O acirramento da posição negacionista quanto à ciência não é fruto do acaso. É um projeto de extermínio de quem vale menos. Os dados não mentem. No cálculo dessas mortes é possível contabilizar a cor, o gênero, a classe social e a localização geográfica. Morrem ricos e morrem pobres. Não na mesma proporção. A maioria dos corpos são colocados em valas comuns. Sem lápides. Sem registros que ali jaz uma pessoa com nome, sobrenome, lugar e história. Como nos alerta Freud, “isso já não é acaso”. É puro descaso, pouco-caso, indiferença, menosprezo, negligência, omissão, frieza, por parte de líderes incapazes de sentir o mal desse tempo com uma dor (des)medida.
Dagmar Silva Pinto de Castro