O corpo que ganha expressão na clínica psicanalítica não é o corpo biológico. Desse, a medicina cuida, prescreve, dá receitas. A psicanálise lida com um outro corpo: subjetivo, singular, linguageiro. Corpo desejo, erógeno, tomado pela libido, pelo gozo. Para Lacan, nascemos como se fossemos um “pedaço de bife com olhos”. É no processo de inserção na civilização, por meio de registros identificatórios – imaginário, simbólico e Real – que o “eu” vai se constituindo. Um “eu” alienado na imagem, na lei e no desejo do o(O)utro. Carente do olhar do outro para se conhecer e se legitimar. Esse corpo alienado encontra na análise um espaço para deslocamentos subjetivos que lhe permitem (des)alienar-se das identificações que lhe causam sofrimento.
Esse corpo subjetivo – corpo ex-sistência como falta-a-ser – não é desterrado. É corpo inserido no mal-estar de um tempo ou, como diz Lacan, nos impasses da civilização. A dimensão singular e subjetiva do sofrimento é marcada por um mundo, uma cultura, um sistema político-econômico e social. Os corpos angustiados e sofridos, que chegam na clínica em busca de uma escuta, revelam atravessamentos de gênero, raça, etnia, territorialidade, classe social, relações de poder. Freud sabia disso. Nunca esteve alheio ao mal-estar do seu tempo. Para o psicanalista Nelson da Silva Junior, no livro Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico, “não há patologia descrita por Freud que não pressuponha a ideia de uma organização social e política que a produza. Em outras palavras, a psicopatologia psicanalítica é simultaneamente uma descrição de sofrimentos subjetivos e uma análise crítica das patologias do social”. Isso requer do ofício psicanalítico um olhar alargado. Lacan afirma que “deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”. Somos seres políticos. Com ou sem partidos. Cada um é responsável pelo modo como se inscreve nos laços sociais. Não há como sustentar qualquer neutralidade.
Recentemente, o escritor Valter Hugo Mãe, em uma entrevista para a revista Magazine Notícias, aponta que a racionalidade política e econômica do projeto hegemônico neoliberal tende a se manter e a nos entreter em um mundo pós-pandêmico. Segundo ele, “O que mudará este paradigma ainda não tem nome. Não é possível imaginar esse futuro tão improvável. O mais plausível é voltarmos à mesma leviana festividade suicida” do mundo pré-pandêmico. Lugar que muitos nem saíram, mesmo com mais de 300 mil mortes no Brasil. De alguma forma, repetem o “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”.

Clovis Pinto de Castro
Dagmar Pinto de Castro
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