Em 2016, como um dos jurados do Prêmio Jabuti na área de Psicologia, Psicanálise e Comportamento, li o livro “Lacan Chinês – Poesia, Ideograma e Caligrafia Chinesa de uma Psicanálise”, do psicanalista Cleyton Andrade, vencedor do Jabuti daquele ano. É uma obra rara para quem se interessa pelas articulações entre a psicanálise lacaniana e a língua chinesa. O próprio Jacques Lacan, no “O Seminário – de um discurso que não fosse semblante”, livro 18, afirma: “talvez eu só seja lacaniano por ter estudado chinês no passado”.
Formado em chinês pela Escola de Línguas Orientais, onde se diplomou em 1945, Lacan retoma, a partir de 1969, seus estudos sob a orientação de François Cheng, chinês naturalizado francês, profundo conhecedor das tradições da China Clássica. Um ano antes, Cheng havia defendido sua tese de doutorado diante de uma banca composta por Roland Barthes e Júlia Kristeva. Os diálogos semanais com Cheng foram fundamentais na reestruturação da teoria lacaniana da escrita e da letra. Cleyton Andrade assinala que “nos 26 seminários que vão de 1953 a 1979, em apenas seis não há alguma referência direta aos temas chineses”.
Recentemente, ao reler o livro “O desenlace de uma análise”, de Gérard Pommier, me deparei com um breve testemunho de François Cheng sobre sua relação com Lacan. Os encontros não ficaram restritos ao âmbito do aprendizado da língua chinesa. Cheng encontrou também um espaço de escuta: “Pus-me, encorajado que era por seu silêncio atento, a contar minha vida, minhas experiências da beleza e do inferno, do exílio e da língua dupla. Revejo ainda seu rosto, subitamente iluminado pela malícia e pela bondade, quando me disse: ‘Veja, nosso ofício é demonstrar a impossibilidade de viver, a fim de tornar a vida um pouquinho possível. Você já viveu a hiância extrema, por que não alargá-la mais, a ponto de se identificar com ela? Você que tem a sabedoria de compreender que o vazio é sopro e que o sopro é metamorfose, não terá descanso enquanto não tiver dado livre curso ao sopro que lhe resta e feito dele uma escrita, por que não vazada.’ Com essas palavras, despedimo-nos”. Lacan não toma o vazio como algo a ser tamponado ou obturado pelo viés do sentido. O vazio é sopro. Sopro desejo que permite ao sujeito inventar para si uma nova escrita e sustentar a vida possível entre as belezas e os infernos.
Clovis Pinto de Castro