“Apanhai-nos as raposas, as raposinhas, que fazem mal às vinhas, porque as nossas vinhas estão em flor” (Cântico dos Cânticos).
Há, pelo menos, três sentimentos que alicerçam a relação a dois quando vivida na dimensão do desvelo: o cuidado, a ternura e a carícia. A palavra cuidado tem origem etimológica em duas expressões latinas: “cura” (escrevia-se coera) e “cogitare oucogitatus”. Para Leonardo Boff, ambas significam “atitude de cuidado, de desvelo, de preocupação, de colocar atenção e de inquietação pela pessoa amada”. Quando se vive sob o aspecto do cuidado, a relação deixa de ser marcada pelo domínio para ser (com)vivência. Os enamorados passam a perceber que não existem na solidão, mas coexistem no plural. Percebem que a fusão neurótica, que não respeita as individualidades e autonomia de cada um, precisa dar lugar a um projeto de vida comum. Ter cuidado por alguém que se ama implica em respeitá-la e acolhê-la com as suas virtudes e com os seus limites e contradições. É uma atitude que gera reciprocidade e complementaridade. Requer paciência pedagógica. Um é importante para o outro. É partilha na diferença.
A ternura é outro princípio essencial para desfrutar a vida na dimensão do desvelo. Assim como o cuidado, ela surge com maior vigor quando a pessoa se descentra de si mesma e se direciona ao outro. A ternura nos torna mais sensíveis e nos leva a comungar da vida do outro com maior intensidade e intimidade. Ela rega a relação e se reveste dos pequenos gestos e palavras para tornar-se presença no cotidiano. Outra dimensão fundamental do existir na perspectiva do desvelo é a carícia. Há duas possibilidades de manifestação da carícia. A primeira é aquela que se manifesta“como pura excitação psicológica”, como fruto de uma paixão passageira. É a carícia do “ficar”, da cultura hedonista tão presente na sociedade moderna, ou seja, o prazer pelo prazer e sem qualquer compromisso. A segunda possibilidade de manifestação da carícia é aquela que respeita o outro em sua diversidade. É a carícia que irrompe de dentro do coração e da alma de quem ama. É o ato de afagar, acariciar, mimar e acalentar. Afago é meiguice.
Estes três sentimentos – o cuidado, a ternura e a carícia – são fundamentais para a qualidade da relação a dois, assim como para as demais relações familiares. Entretanto, sabemos que nem sempre eles estão presentes. As rotinas e preocupações do dia a dia podem impedir a sua manifestação. Viver a dois é uma construção que requer paciência e tempo. Com diz a sabedoria popular, “é um tijolinho por dia”. É essencial manter uma atitude de vigilância diária para preservar a convivência. Nesse sentido, o livro “Cântico dos Cânticos” (tradição judaica), repleto de poemas que celebram o amor e os perigos que o acompanham, recomenda: “Apanhai-nos as raposas, as raposinhas, que fazem mal às vinhas, porque as nossas vinhas estão em flor”. A metáfora das “vinhas em flor” é utilizada para evidenciar a formosura e o encantamento do amor entre dois amantes. Há, porém, um perigo que ronda as vinhas e pode destruí-las: as raposas e as raposinhas. Na verdade, elas podem devastar os vinhedos. Por isso, é imperativo que as raposas sejam capturadas. É um desejo dos amantes que nada destrua ou interfira no amor que os une, pois sabem dos perigos que rodam o relacionamento.
Ainda hoje, após milhares de anos da criação desse poema, e diante da beleza e dureza destas metáforas, os enamorados, de qualquer idade, devem se perguntar: “As nossas vinhas estão em flor? Quais são as ‘raposas e raposinhas’ que podem destruí-las”? São perguntas fundamentais para o fortalecimento da relação amorosa, pois muitos casais só percebem a presença das “raposinhas” quando as vinhas já estão destruídas e não há mais espaço para aceitar as diferenças e particularidades do outro. Perceber o encanto diário de uma vinha florida é essencial para manter acessa a chama do amor. É se colocar para além da fusão neurótica que adoece um casal. É possível expressar esse encantamento por meio do cuidado, da ternura e da carícia. “Quem ama cuida“, diz uma canção popular.
Dr. Clovis Pinto de Castro, diretor da clínica Caminhos da Psicanálise.